"Estudasses!"


Eu, ainda pequena, ouvia vezes sem conta a afirmação "Estudasses".

Quando cheguei a casa com a minha primeira negativa, ainda miúda, para ai com os meus 12 anos, os meus pais castigaram-me. Lembro-me, ter de arrumar a casa todas as sextas feiras à tarde. E tinha de ser logo naquele dia que, religiosamente, eu e todos os meus amigos da escola brincávamos até ao sol se pôr. Cada vez que tentava negociar aquela decisão a palavra ordeira era "estudasses". Não queria fugir à minha sanção, nem às minhas responsabilidades, no entanto "estudasses".
Foram sempre castigos simbólicos que, para a altura, eram quase tão graves como o fim do mundo. 

Ao longo dos anos eu ia-me apercebendo da importância que a sociedade atribuía aos estudos. O desenvolvimento social, cognitivo e pessoal diferia quando comparando entre pessoas que haviam estudado e não o haviam feito. 
Socialmente havia uma diferenciação entre os mesmos seres humanos. O respeito, a forma de olhar e até a maneira de falar, com  aqueles que tiveram estudado era superior àquele que, humildemente, se fizera à vida. As conversas, a postura, os cargos sociais, os postos de trabalho e o poder económico são factores que contribuíram para a diferenciação das classes sociais. E, por norma, só quem estudava conseguia atingir um estatuto na alta sociedade e nas melhores carreiras profissionais.

Havia questões que as respostas eram dadas automaticamente.
O salário não chegava para pagar todas as contas familiares, "estudasses";
Trabalha o dia inteiro, todo os dias da semana e uns tantos fins-de-semana por mês, "estudasses";
Saiu de casa sem ver os filhos e chega a casa já eles estão a dormir, "estudasses";
Nunca conseguiu levar a namorada a um restaurante na baixa, "estudasses";
Quando ouvia alguém a lamentar do seu trabalho ou da sua vida pessoal, do outro lado havia sempre alguém a suar um, bem alto, "estudasses".

Hoje, ao fim de 16 anos a estudar, com ensino superior concluído, formações e habilitações académicas acima da média eu lamento, exatamente as mesma circunstâncias da vida, mas desta vez não digam "estudasses" por amor de Deus. Encontrem outra resposta, outro culpado ou outra desculpa para esta sociedade inócua.

Passamos a vida a tentar corresponder às expectativas familiares e sociais. Deixamos de viver intensamente para nos concentrarmos num futuro risonho. Batalhamos, passamos noites e dias em claro, decoramos centenas de páginas, pomos de parte os livros românticos para ler autores que, ainda hoje, nem o nome sabemos pronunciar, foram esforços físicos e mentais, lágrimas e ataques de nervos. Para ao fim encontrar os meus colegas de secundário que, entretanto seguiram para cidades e faculdades diferentes, mas acabaram, tal como eu, à porta do Centro de Emprego. E não me digam, "estudasses".

Sr. Professor, Sr. Doutor, Sr. Engenheiro (quase que se ajoelham), ainda muitos lhes tiram o chapéu ou encurvam as costas em jeito de acenar. Esses que, em bons velhos tempos, seguiram uma carreira profissional só porque tinham um QI a cima da média, em muitos casos nem o ensino secundário haviam terminado. São hoje Srs. reformados ou em fim de carreira, com uma posição social e profissional difícil de alcançar. Hoje, esta nova geração de estudantes recém formados, e muitos já no mercado, não são "vitimas" do "estudasses". Levam com os estilhaços e a podridão da politica interna, as oportunidades já pré-selecionadas (cunhas), os favores e as carreiras pré datadas, com um fim já predestinado (contratos). Vivem com os sonhos destruídos, contentando-se com um trabalho precário só para dizerem que trabalham na área de formação, admitem a humilhação profissional quando lhes propõe o ordenado mínimo nacional para exercer funções de direção técnica, exigem-lhes horas extras sem vencimento, então se, a entidade empregadora, poder usufruir de um estagiário tanto melhor.

São estes os "estudasses" de hoje que vivem à quem dos "estudasses".

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